Toda
Musicoterapia parte da condição de possibilidade da experiência musical no
mundo. Isso significa dizer que o trabalho de musicoterapeuta se abre antes a partir
do modo que as experiências musicais acontecem na vida, no mundo, e só depois
esse se organiza a partir de estudos e lugares que permitem as práticas de
experiências musicais terapêuticas se estabelecerem como uma profissão e
disciplina a partir do século XX.
Podemos acompanhar
como a musicoterapia se desenvolve enquanto disciplina e profissão a partir dos
modos de organização (com-posição) da experiência musical no mundo ao nos colocarmos
num duplo movimento investigativo:
(1) que mundo se abre
para musicoterapia para que essa se estabeleça como uma profissão, caminhar
pela ecologia mundana da musicoterapia acompanhando como ela se faz como uma profissão
e disciplina – a parte acadêmica da história.
(2) que mundos a
musicoterapia abre, ou seja, acompanhar que tipos de vivências e movimentos
terapêuticos se dão nas experiências musicais, o que elas e que tipos de
relações elas propiciam e favorecem para serem consideradas modos de cuidados e
tratamentos que fazem desse tipo de experiência um saber e uma profissão, a parte experiencial/fenomenológica da
história.
O PRIMEIRO
MOVIMENTO, a PARTE ACADÊMICA DA HISTÓRIA, diz respeito à como a
Musicoterapia se organiza como campo do conhecimento, como uma ciência e
profissão. Esse é um movimento de dimensão mundial, internacional, não é
apenas uma proposição local, de uma parte específica do mundo. É um movimento
que se funda a partir do reconhecimento dos gestos da experiência musical
na vida humana ao longo da história da humanidade, é um reconhecimento da
importância da dimensão musical na vida, e uma proposição de compreender,
descrever e amplificar tais gestos que já sempre estiveram presentes na
história da humanidade, muito antes de a Musicoterapia se estabelecer como
uma disciplina e profissão no século XX, o que a Musicoterapia como campo do
conhecimento faz é descrever, organizar, categorizar, especificar, afinar,
amplificar, ampliar tais gestos, inaugurando assim a Musicoterapia como
profissão e disciplina.
Se perguntar qual
mundo se abre para a constituição da profissão de Musicoterapia é
acompanhar quais situações, contextos e momentos históricos que permitiram
realizar o posicionamento de um fazer terapêutico musical profissional
sustentado por uma perspectiva científica, isso quer dizer, quais situações que
permitem compreender a experiência musical de modo pragmático em cenários de
tratamento e cuidado de saúde. Quais saberes e campos do conhecimento sustentam
e permitem fundamentar tal proposição? Tais teorias e fundamentações, só se
estabelecem a partir de um campo de atuação, quais campos são esses que acolhem
a prática musicoterapêutica? O quanto para se estabelecer no mundo esses
profissionais partem da experiência musical e de suas condições de possibilidade,
e o quanto nesse movimento encontram ressonâncias e possibilidades de
compreender, justificar, organizar, validar tais movimentos a partir de
teorizações já vigentes nos campos que esses profissionais se inserem? Ou, em
que medida é necessário articular diferentes campos de saberes e disciplinas, e
o quanto é preciso fundar um novo campo?
Em termos de epistemologia,
ou seja, da construção do saber da Musicoterapia, ela é reconhecida como
um híbrido entre arte e ciência, e como uma profissão
transdisciplinar, que se constitui em diálogo com os campos das Artes,
Ciências e Humanidades. Ela não é simplesmente a junção de artes e
ciências, ela é expressão de um movimento que reconhece a presença da música
como uma atividade tão ampla e diversa na vida que funda uma possibilidade de
pensar modos de tratamentos e cuidados atrelados a tal dimensão. E é de
fundamental importância compreender que isso vai muito além de utilizar
atividades e técnicas musicais para se alcançar alguns objetivos específicos,
esse movimento vai muito além e propõe repensar a nossa existência no enlace
com a dimensão musical, reconhecendo sua amplitude e imbricamento nas mais
diversas situações e dimensões da vida humana. É dar à experiência musical um status de
condição de possibilidade, ou seja, daquilo que torna possível a experiência
vivida, aquilo que poderíamos também chamar de musicalidade, e que se encontra
presente em todas as culturas, em todas as etapas da vida, em todos nós e entre
nós de maneira singular e coletiva, íntima e compartilhada. A música é
presença constante e indispensável na vida, e como tal merece um campo do saber
que investigue sua presença a partir da experiência vivida e de como a música
torna possível e melhor a vida das pessoas, esse campo é a Musicoterapia.
Não que a
música não seja estudada e investigada nos mais diversos campos, ela o é, à guisa
de exemplificação poderíamos citar alguns campos e suas disciplinas que se
ocupam do estudo da música, tais como: a arte (música, musicologia, educação
musical, história da música); a filosofia (estética); a psicologia (psicologia
da música, música e comportamento, música e psicanálise); a física (acústica e
psicoacústica); a educação (música e desenvolvimento, música e cognição); a
sociologia (sociologia da música, etnomusicologia, música e cotidiano); e a
antropologia (antropologia sonora, estudos culturais), para citar apenas alguns,
essa lista vai muito além, mas a musicoterapia tem suas características
singulares, e uma delas não é partir do objeto música, mas da
experiência e das relações musicais, e como essas se tornam terapêuticas.
E aí chegamos
ao SEGUNDO MOVIMENTO INVESTIGATIVO, a parte experiencial da história,
que na verdade, poderíamos considerar como primeiro, ou melhor, como primário, uma
vez que esse é fundante do movimento acadêmico que já é tardio à experiência. O
movimento teórico, acadêmico vem depois, organizando o movimento vivido, as
presenças da experiência musical no mundo, organizando-as, adaptando-as, desenvolvendo-as
em contextos de tratamento e cuidado na sociedade.
Nesse duplo
movimento investigativo - por um lado acadêmico-histórico e por outro experiencial/fenomenológico
- separado apenas por questões didáticas, trata-se de acompanhar como a
experiência musical se torna musicoterapêutica nas mais diversas situações da
vida e na sociedade, seja em contextos de saúde, educacionais, organizacionais,
sociais, relacionais, ou onde quer que a experiência musical possa se fazer
presente e contribuir para uma vida melhor.
Queremos
acompanhar movimentos, episódios e situações que permitiram a profissão
emergir, que a tornaram uma disciplina que orienta os modos da experiência
musical se mostrarem e se fazerem terapêuticas na sociedade. Estamos interessados em trilhar esse
caminho nos mantendo próximos das experiências vividas, e não de teorias
afastadas da experiência. As teorias são tardias às experiências, como já
apontado anteriormente, elas vêm após o vivido, como um movimento reflexivo de
compreensão, justificação e organização. Estamos interessados nos
movimentos prático-teóricos que sustentam o campo da musicoterapia em sua
diversidade, com uma acentuação nas perspectivas experienciais (orientadas pela
arte) e relacionais (orientadas pela psicoterapia e pelo contexto).