MAPA DA ESCUTA MUSICOTERAPÊUTICA - GALERIA DE MEMÓRIAS -AFETOBIOGRAFIA MUSICOTERAPIA FMU
(atualizado em 15/09/2025 - 11:40)
A quem possa interessar componho aqui uma "afetobiografia" através de relatos de experiências vívidas, de imagens e de canções, um mapa dos meus entrelaçamentos afetivos e formativos com o Curso de Musicoterapia da FMU, foi nesse lar que me formei, transformei e segui formando e transformando centenas de musicoterapeutas.
A Musicoterapia da FMU me deu régua e compasso (1) para articular o meu modo mais próprio de praticar Musicoterapia, entro nesse curso em 2001 em sua primeira turma aos 19 anos de idade e saio de lá em 2019, 18 anos depois tendo alcançado minha maioridade. Saio por vontade própria para me dedicar ao meu projeto autoral de Musicoterapia, o Mapa da Escuta, parto depois de uma longa jornada nos mais diversos papéis: aluna, monitora, pesquisadora, supervisora de estágio, professora da graduação e pós graduação em diversas disciplinas, membro do núcleo docente estruturante, professora responsável pela Clínica-Escola de Musicoterapia e Coordenadora da Especialização em Musicoterapia.
No ano de 2021, momento em que o curso de Musicoterapia da FMU estava completando 20 anos, a APEMESP – Associação Paulista de Profissionais e Estudantes do Estado de São Paulo - dedicou o XXI Fórum Paulista de Musicoterapia a tal celebração. O evento foi realizado em junho de 2021 e se deu por meio de transmissão online, pois estávamos em quarentena em meio a um cenário pandêmico devido a Covid-19. Eu fui uma das palestrantes do evento, e nomeei a minha apresentação de “Meu Histórico Sonoro-Musical da Musicoterapia da FMU: Da Liberdade à Maioridade”, este título jocoso brincava com dois grandes componentes muito fortes na minha trajetória formativa tanto em âmbito pessoal, como musicoterapeuta clínica, bem como docente de Musicoterapia: a Liberdade e a Investigação da Dimensão Musical da Existência, esta última aqui representada pelo “Histórico Sonoro-Musical”, uma proposta didática que sempre me encantou, a qual realizei com quase todas as turmas que lecionei na FMU de 2009 a 2025, tanto na graduação quanto na especialização. A “liberdade” sempre foi questão central pra mim, me levando a tornar-me uma Musicoterapeuta Existencial, mas a Liberdade no título não aponta apenas para as bases de uma clínica Fenomenológica-Existencial, mas também faz referência ao bairro da Liberdade em São Paulo, onde em 2001 teve início as primeiras turmas do curso de Graduação em Musicoterapia da FMU, em que fui aluna da primeira turma do período da manhã.
Disse no parágrafo anterior que tinha saído oficialmente da FMU em 2019, mas a verdade é que nunca estive completamente ausente, já no ano seguinte voltei a dar aulas na Especialização em Musicoterapia, e participar de eventos e aulas especiais no curso. A foto no início desta página é de maio de 2025, quando lecionei a última aula para os alunos da especialização, encerrando mais um ciclo, já que a partir do próximo ano devido à regulamentação, a formação deverá seguir somente com a graduação.
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Maio de 2025 - Última aula na Especialização em Musicoterapia / Apresentação das Investigações da Dimensão Musical da Existência |
Para celebrar os 20 anos de Musicoterapia da FMU, em 17 de setembro de 2021, uma nova celebração foi realizada, ainda em formato online, pelo próprio curso de Musicoterapia. Também fui convidada a compor uma mesa com os mais que queridos parceiros de jornada, Raul Jaime Brabo e Márcio Guedes Correa. O tema da nossa mesa foi: “Possibilidades de Escuta Musical”, e ela foi mediada pela professora Ana Maria Caramujo, então coordenadora da graduação. A celebração integrou a XXI Semana de Musicoterapia da FMU e a II Semana Internacional de Musicoterapia. Em minha fala, abordei os enlaces da escuta musical em nossa biografia, aprofundando a reflexão sobre a Dimensão Musical da Existência. Nesta data, a pandemia já estava cedendo e, além da dedicação ao Mapa da Escuta, eu havia aceitado uma nova missão: atuar na docência de Musicoterapia em outra instituição, viajando pelo Brasil para dar aulas. Neste dia, participei online e fiz minha fala diretamente de Recife.
Agora, anos depois, em setembro de 2025 uma nova celebração, agora presencial, reunindo novamente os participantes acima, celebrando os 25 anos do projeto do Curso de Musicoterapia da FMU, os 30 anos de APEMESP e 45 anos da UBAM (União Brasileira das Associações de Musicoterapia), é um momento especial após a regulamentação da profissão de Musicoterapia no ano passado.
Eu agora tenho 43 anos de idade e 21 anos de formada em Musicoterapia, e penso que o tema “Da Liberdade à Maioridade” abordado em 2021, ainda cabe de forma interessante e jocosa. A maioridade é a idade mínima estabelecida por lei para que uma pessoa seja reconhecida como plenamente capaz de exercer todos os direitos e deveres civis e penais sem a supervisão dos pais ou de tutores, há algum tempo atrás, antes de 2002, se fazia no Brasil uma distinção entre maioridade aos 18 anos de modo parcial e aos 21 anos maioridade completa, hoje legalmente esta distinção não existe mais, mas ainda se considera que aos 21 anos há um aprofundamento da vida adulta, com maior autonomia e aquisição de direitos mais específicos, como por exemplo, a possibilidade de esterilização voluntária. Aos 21 anos de formada sinto meu trabalho mais maduro, transformado e transformando, mas não por questões legais ou determinações sociais ou morais, o tema da Liberdade se faz mais relevante do que nunca, e hoje considero a minha Clínica do Mapa da Escuta, uma clínica radicalmente existencial, que considera que não há determinações prévias nos nossos modos de ser. Existir é uma tarefa existencial que se faz ao estarmos encarnados no mundo, nada determina de saída que devemos ser de um modo ou de outro, mas há tensões e situações que oprimem, facilitam ou que dificultam projetos de vida, mas deixaremos esse tema para uma discussão posterior, gostaria agora apenas de partir do fio "da Liberdade à Maioridade" para trazer de volta um texto que comecei a escrever para o evento de 2021, partirei dele para compartilhar uma série de recordações, um mapa que registra minhas trilhas afetivas e formativas dos meus entrelaçamentos com o curso de Musicoterapia da FMU.
Devo dizer, no entanto, que teço e faço tal movimento vagorosamente e com retoque, é uma obra aberta e em movimento constante, tal qual a vida. Outros sentidos, outros gestos, outras escutas, novas trilhas poderão ir aparecendo ao longo do tempo e dos caminhos, novas postagens, novos enlaces, novas relações, fique à vontade para navegar no meu infinito particular.(2)
MEU HISTÓRICO SONORO-MUSICAL MUSICAL DA MUSICOTERAPIA FMU: DA LIBERDADE À MAIORIDADE.
*Este texto começõu a ser escrito no primeiro semestre de 2021 como roteiro para a minha participação no XXI Fórum Paulista de Musicoterapia, no entanto, como se diz por aí escrever é reecresver, e cada vez que volto ao texto novas texturas e tecituras aparecem, eu sigo com-versando na escrita e deixando que ela me guie ao movimento que se pede.
"O propósito da vida é abordar com uma canção qualquer coisa que encontrarmos pela frente.”(Provérbio Sioux)
Pode parecer estranho dizer isso, mas estar aqui hoje me soa ao mesmo tempo muito natural e muito estranho. (A ambiguidade sempre presente!)
Vou começar pelo natural porque talvez seja mais fácil de dizer sobre ele. É natural porque desses 20 anos de história do curso de Musicoterapia, eu estive frequentemente presente em pelo menos 18. Primeiro como aluna, entre os anos de 2001 e 2004, depois como uma ex-aluna muito presente que fazia aparições como professora convidada da pós, ou como monitora voluntária da Clínica Escola de Musicoterapia entre os anos de 2004 e 2008. E depois em 2008 entrando oficialmente para o corpo docente e seguindo nesse percurso até 2019.
Perdi as contas de quantas disciplinas ministrei, quantos projetos assumi, quantos eventos organizei, é uma maratona de tirar o fôlego, à guisa de resumo apenas como uma colocação mais formal entre as principais funções estiveram: a docência de disciplinas diversas da área de Musicoterapia na graduação; a supervisão de estágio na Clínica Escola e em estágios externos; a implantação de estágios externos que culminaram em aberturas de campos de trabalho para musicoterapeutas, nos quais os estagiários de musicoterapia ao concluírem os estágios foram contratados; a organização técnica da Clínica-Escola de Musicoterapia e do estágio em Musicoterapia; a participação no Núcleo Docente Estruturante que discutia, organizava e produzia os planos de ensino; e a minha atuação na Especialização de Musicoterapia, da qual fui coordenadora e procurei conduzir uma perspectiva de Musicoterapia Preventiva e Social, em complementação à graduação, na qual se produzia uma formação mais clínica. Tudo isso faz com que seja muito natural estar aqui hoje, pois a minha vivência nesses anos foi intensa e orgânica.
Ao mesmo tempo é muito estranho, por diversos motivos, o principal deles, talvez seja o modo de estar aqui hoje através de uma tela de computador, distante fisicamente das pessoas, da afetividade e do próprio lugar físico em que acontecia o curso de Musicoterapia no mundo “pré-pandêmico”. Na minha cabeça falar para um público sobre a história do curso seria estar no Auditório do Campus Santo Amaro, onde tantos eventos foram realizados. Seria olhar nos olhos das pessoas, e ouvirmos ou cantarmos juntos uma canção, nos emocionarmos, chorarmos juntos, fazermos uma ciranda, quem sabe?
Talvez aquela ciranda que planejamos para a "Ação de Saúde" de 2018, e que teve tanto impacto que acabou sendo adotada pela Escola da Saúde como o "Hino da Empatia", quem por lá estava naquela época há de se lembrar. A música que utilizamos para co-criar essa experienciação foi o “Mantra Nordestino” de Ray Lima (3), e foi proposta pelo aluno Heber Teixeira, naquela época no 6º semestre de Musicoterapia, quando nos reunimos para preparar aquele evento, a intenção era propor uma experiência musical envolvente e afetiva que todos pudessem participar e se sentir acolhidos. Era um momento tenso no cenário nacional, o evento aconteceria entre o primeiro e o segundo turno das eleições para presidente, e havia muitas discordâncias e clima de insegurança.
Para os que me lêem e não sabem, a AÇÃO DE SAÚDE era um evento que acontecia todos os anos na FMU, em que o campus se abria ao público para oferecer gratuitamente serviços de saúde para a comunidade. Nós, da Musicoterapia fizemos participações memoráveis, se eu fosse contar apenas uma parte da história de nossa participação nesses eventos já não daria tempo de dizer mais nada. Foram dias de extrema felicidade e cansaço também. Mas sabe quando o cansaço é aquele de no fim do dia sabemos o quanto a nossa participação tinha feito diferença na vida das pessoas e de todos nós? Ao escrever sobre esses momentos imediatamente um trecho de uma canção toca em minha "rádio-cabeça-corpo-canção": "quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé, e a cabeça rodava, num gira girar de amor" quando o cansaço era rio, e rio qualquer dava pé/ e a cabeça rodava, num gira girar de amor" [ProvoCanções Existenciais: O Que foi Feito DeVera (Fernando Brant, Márcio Borges e Milton Nascimento)](4)
O quanto ali em meio a exames biomédicos e coisas do tipo, as pessoas percebiam o quanto fazia bem estar em contato com a música. O quanto o ali, o inesperado para público – o convite à experiência musical - trazia a melhor surpresa do dia, e talvez um "novo" aprendizado: Música faz bem para saúde! Na verdade, um aprendizado muito antigo, desde sempre presente na história da humanidade, mas tão esquecido na nossa sociedade voltada para questões da técnica e da produção incessante, um saber que a Musicoterapia foi resgatar e requerer como prática de saúde, como ciência, profissão. Um saber experiencial que as pessoas podem sentir, e que ao praticar, volta e meia aparecia ali a confirmação via experiência na boca dos participantes: "bem que dizem que quem canta seus males espanta!".
Na ciranda a qual me refiro, nós do curso de Musicoterapia saíamos pelo campus cantando e convidando as pessoas a se aproximarem, dançarem, cantarem, se olharem, se escutarem, se perceberem, perceberem outres, perceberem o mundo ao redor ... muita gente se juntava e conosco experimentava uma coisa que a cada vez que cantávamos aprendíamos. Cantávamos assim:
escuta, escuta!
o outro, a outra já vem
escuta, acolhe!
cuidar do outro faz bem
(2x)
desde o dia em que nasci,
logo aprendi algo assim
cuidar do outro, é cuidar de mim
cuidar do outro é cuidar de mim
cuidar de mim é cuidar do mundo
cuidar do mundo é cuidar de mim
Muitas outras “Ações da Saúde” foram especiais, muito especiais mesmo, sempre me lembro com carinho, uma das primeiras que tive o privilégio de poder organizar, na qual fizemos várias "Instalações" dentro da Clínica de Musicoterapia: Sala do Silêncio, Som da Natureza, Som da Cidade, Música e Movimento, Sala da Escuta Musical.
[inserir fotos da sala e trilha da sala som da cidade]
E teve ainda outra lindíssima, em que a partir da ideia do Raul criamos um realejo humano, o tema daquele ano era “Cuidados com o Coração”. Então os alunos iam andando com o nosso realejo, feito carinhosamente pelo professor Sandro Leite. Os participantes selecionavam um cartãozinho, no qual tinha uma dica de saúde e um código que indicava uma música que seria cantada especialmente para aquela pessoa, então se cantava uma música inteirinha para aquela pessoa. Uma lindeza só! Só de falar a rádio cabeça toca na minha mente um: " oi tum tum bate coração, oi tum coração pode bater”(5)
Alunos do Curso de Musicoterapia cantando "Não Quero Dinheiro, Só Quero Amar" (6) para um participante no Realejo da Ação de Saúde (2015)
A primeira ciranda citada hoje aqui, a do "Mantra Nordestino" no entanto, foi especial de uma outra maneira também, repetimos ela muitas vezes em diversos eventos da faculdade entre 2018 e 2109, e nesse último ano ela me tocava especialmente, pois eu já sabia que estava preparando a minha despedida, sentia que a Musicoterapia FMU, já tinha me dado régua e compasso e que era hora de partir de para uma outra jornada. Em 2109, utilizamos ela uma vez mais na 18ª Ação de Saúde, que naquele ano aconteceu em outubro, e mais uma vez no fio da escrita a canção de Milton toca na minha "rádio-cabeça-corpo-coração-cançao" "outros outubros virão, outras manhãs plenas de sol e de luz" [ProvoCanções Existenciais: O Que foi Feito DeVera (Fernando Brant, Márcio Borges e Milton Nascimento)](4)
E esse é um outro motivo estranho estar aqui hoje, parece tão recente a saída, ao mesmo tempo parece que é outra vida. Sai do curso no último semestre antes do mundo pandêmico. E confesso, que tenho muita dificuldade de imaginar o curso acontecendo fora daquele espaço de tanto afeto em que tanta coisa foi vivida que é a Clínica-Escola da FMU. Embora, eu tenha tido a oportunidade nesse meio tempo de ser convidada para estar com os alunos no ambiente virtual, e mesmo com muitas câmeras desligadas, e comentários por escrito no chat, ou algumas manifestações via áudio, pude sentir a "energia" do curso de Musicoterapia, a doçura dos alunos, a paixão pela música e a certeza de querer levar esse saber para o mundo, para transformar as próprias vidas e as vidas dos demais.
Acho que esse afeto, esse amor é o que ficou mais evidente nesses anos todos pra mim, como uma tonalidade fundamental. Duas palavras sintetizam hoje o meu percurso adicionada do advérbio "muito": Muito amor e muita luta! A luta não foi pouca e nem pequena, não vou escondê-la e dizer que foi só alegria e beleza, mas vou me dedicar a falar mais do afeto, que é marca que acredito que seja indelével. Da luta acho que não preciso explicitar tanto nesse momento de celebração, mas acredito que não seja segredo para ninguém a luta diária que é sustentar uma formação de qualidade num mundo que segue para extremos neoliberais, quando muito se resume a cortes e aumento de lucros. Mas hoje é dia de celebrar a vida, deixemos por um instante em suspenso a necropolítica, ela não foi convidada, é dia de celebrar a vida, realcemos a energia vital de puro teor de beleza e afeto que é se tornar musicoterapeuta e expandir a experiência musical, de beleza, de afeto, de acolhimento, de escuta e de tantos outros adjetivos na vida das pessoas. Chamemos Gil, mais uma vez para nos acompanhar:
REALCE (Gilberto Gil)
não se incomode, o que a gente pode, pode
o que a gente não pode, explodirá
a força é bruta e a fonte da força é neutra
e de repente a gente poderá
realce, realce
quanto mais purpurina, melhor
realce, realce
com a cor do veludo
com amor, com tudo de real teor
de beleza
Realce (realce)
Realce (realce)
Realce (realce)
Realce (realce)
não se impaciente
o que a gente sente, sente
ainda que não se tente, afetará
o afeto é fogo e o modo do fogo é quente
e de repente a gente queimará
Realce, realce
quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
com a cor do veludo
com amor, com tudo de real teor
de beleza
Realce (realce)
Realce (realce)
Realce (realce)
Realce (realce)
não desespere, quando a vida fere, fere
e nenhum mágico interferirá
se a vida fere com a sensação do brilho
de repente a gente brilhará
Realce, realce
quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
com a cor do veludo
com amor, com tudo de real teor
de beleza
O fato é que entre o estranho e o natural (será que melhor seria dizer familiar?), a luta e o afeto, eu não poderia deixar de estar aqui para celebrar, mesmo sem saber direito o que falar, apesar de serem muitas histórias pra contar. Um memorial ou espécie de portifólio poderia ser feito como registro histórico, mas isso não caberia dentro de meia hora, e acredito que nem caberia neste formato, tornando-se enfadonho e muito formal, também acho que não teria nada a ver comigo, sempre procurei dar mais valor as histórias vividas, prefiro que elas sejam contadas no sentido de serem narradas e vividas, não contadas no sentido de contabilizadas, apesar de serem muitas. Se pudesse contar eu gostaria de saber quantos cafés tomei ou quantos abraços foram dados, ou quantas emoções compartilhadas.
Eu escolhi então um nome poético para minha apresentação para que o contado pudesse girar em torno dele, assim dei um título a apresentação que pudesse conduzir minha fala, e é a partir desse título que vou me guiar para falar nesse breve tempo. O título escolhido foi: “Meu Histórico Sonoro-Musical Musical da Musicoterapia FMU: Da Liberdade a Maioridade.”
Deixe-me contar a vocês o que significa esse nome meio amalucado, começarei pelo subtítulo: “Da Liberdade à Maioridade”
Da Maioridade
A palavra “maioridade” vem quase como uma brincadeira, aparece quando recebo o convite para falar nesse evento e me dou conta que dos 20 anos de história do curso, pelo menos 18 eu estive por lá. Chego em 2001 aos 19 anos de idade como aluna da primeira turma de graduação. Saio oficialmente como docente e coordenadora da pós-graduação no ano de 2019, aos 38 anos de idade, tendo feito um percurso no qual realizei tantas coisas que seria impossível dizer aqui, mas saio com a intensa sensação que é hora de ir, que a Musicoterapia FMU já tinha me dado “régua e compasso” e que era hora de desenhar o meu próprio Mapa da Escuta, com música, arte, poesia e afeto.
Quando volto a tecer (te ser) este texto é 2025, e uma nova conta pode ser feita tenho agora 24 anos na musicoterapia (desde que entrei no curso) e 21 anos de formada, uma outra maioridade. Antigamente havia uma diferença em relação a maioridade da mulher e do homem, um aos 18 outro ao 21, acredito que essa mudança já não exista mais legalemnte, mas posso dizer que essa questão da desigualdade de gênero é tema central hoje na minha trajetória existencial e na minha clínica. O Mapa da Escuta, meu projeto autoral de Musicoterapia, trata-se de uma Musicoterapia Existencial, em que a liberdade de poder ser está na base de tudo. É um lançar-se no mundo que busca ajudar as pessoas a sustentarem seus projetos existenciais, para que cada pessoa que cruza meu caminho [ProvoCanção Existencial: Brincar de Viver (Guilherme Arantes) - Maria Bethânia] e trilha comigo mapas de escuta existencial possa d’ar-te conta de seus modos de ser e estar no mundo, sustentando a ambiguidade e as dores e delícia de se ser quem se é [ProvoCanção Existencial: Dom de Iludir (Caenato Veloso)], quem se quer ser, de quem se pode ser, afinal como já indicava Gonzaguinha no samba que embalou a minha gestação: "somos nós que fazemos a vida, como ser, ou puder ou quiser." [ProvoCanção Existencial: O que é o que é? (Gonzaguinha) - Zizi Possi]
Mas a "Liberdade" no título da minha palestra não refere-se apenas ao meu alçar voo do curso após 18 anos simbolizando a maioridade, a Liberdade do título refere-se ao lugar de início do curso, onde tudo começou, lá próximo ao centro de São Paulo, no bairro da Liberdade, vizinho do bairro em que eu morava, Aclimação onde nasci, e onde abri uma correspondência da faculdade na qual informava as disciplinas a serem cursadas no primeiro semestre, me lembro deste momento exato em que tive certeza que escolhi bem e era aquele caminho que eu queria trilhar, nem acreditei que aquilo era estudar, aquilo era um sonho. Naquele momento um sonho tão ingênuo, como foi a música que toquei no violão e cantei na prova específica de música do vestibular: “O Barquinho” :
"dia luz, festa do sol
e um barquinho a deslizar
no macio azul do mar
tudo é canção, amor se faz
num barquinho pelo mar,
que desliza sem parar
sem intenção, nossa canção
vai saindo pelo mar e o sol"
(...)
E assim foi, sem intenção (mas com a intencionalidade que é própria da experiência musical) a canção me conduziu e me levou a navegar o mar da Musicoterapia. Outro dia recebi de um amigo musicoterapeuta, que foi aluno e colega de trabalho, hoje professor aqui do curso, um provérbio Sioux, que dizia que: "O propósito da vida é abordar com uma canção qualquer coisa que encontrarmos pela frente”, acredito que ele tenha me enviado porque sabe do meu apreço pelas canções e quanto guio minha existência pela experiência delas, lembro do trecho de uma outra música que sempre me acompanha e me ensina sobre o meu próprio modo de estar no mundo é uma canção de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro que diz assim: "uma canção me guia, a intuição vigia e a minha direção é o caminho do meu coração” [ProvoCanção Existencial: Santo Dia (Eduardo Gudin/Paulo César Pinheiro)]
E sinto que é realmente assim que tenho seguido o meu caminho, deixando as canções me guiarem, e achando canções que falam sobre a vida e à vida, e ainda como disse Milton: “eu só sei que há momentos que se casa com canção, de fazer tal casamento vive a minha profissão”. [ProvoCanções Existenciais: Canções e Momentos (Milton Nascimento)]
Essa canção remete também a um outro momento especial quando alunos e professores do curso nos juntamos no auditório para ensaiar, cantar e gravar essa canção em comemoração ao Dia Internacional da Musicoterapia, naquele momento comemorado naquele ano no dia 1º de maio de 2019.
É interessante que ao construir esse relato percebo que ele é também uma homenagem a cidade de São Paulo, engraçado falar de lugares aqui no não-lugar. A cidade de São Paulo está completamente imersa na minha palestra, apesar de a canção “Aquele Abraço” de Gil que usei para dizer que a Musicoterapia FMU já me deu régua e compasso, ser uma música que fale do Rio e da Bahia, até teria histórias para contara a partir daí, mas quem sabe isso serão cenas de um próximo capítulo.
Partindo da Liberdade ...
Foi lá na Liberdade que tudo começou, ficamos lá por pelo menos um ano, gostaria de contar alguns relatos de como foi esse início, pois ao começar a pensar sobre o que compartilharia aqui, muitas lembranças daquela época me vieram, dos meus tempos de estudante, do percurso que fiz. E foi interessante a nostalgia de lembrar desses tempos, pois tudo na minha vida aconteceu de forma tão encadeada e rápida que nem sei se já havia parado para ficar contemplando esses momentos.
A palavra Liberdade aqui é usada de uma maneira literal e Poética, foi lá na Liberdade, no bairro onde tudo começou. Antes de virmos para o prédio da Santo Amaro, o campus da Saúde, que depois recebeu o nome de Escola da Saúde, foi lá que fomos inicialmente alocados, em um dos prédios da Liberdade, que também ficava “quase” em frente a biblioteca, mas aqui era preciso atravessar a rua. Na liberdade, no bairro vizinho da minha casa, passamos por vários prédios, primeiros fomos alocados no 14º andar, se não me engano de um prédio que era novo ou estava sendo reformado. No último andar havia uma sala grande com espaço livre para as nossas práticas que sempre envolviam instrumentos, corpo, movimentação, dança. E de lá se via o centro de São Paulo, a sala era toda com vidro espelhado, eu como uma paulistana nata amava ver São Paulo, sua selva de pedras sempre me fascinou, antes da aula começar sempre ficava contemplando, mesmo sob os olhares de indignação de alguns colegas que diziam que beleza mesmo era ver o verde, a natureza, não aquele amontado de prédios. Não discordo que a natureza seja linda de se ver, amo estar em contato com o verde e também com o mar, mas São Paulo é um enigma, linda de lua, lugar de ideias como cantado por Celso Viáfora [ProvoCanções Existenciais: Linda de Lua (Celso Viáfora)], mas também onde há a força da grana que ergue e destrói coisas belas. [ProvoCanções Existenciais: Sampa (Caetano Veloso)].
Nessa sala do último andar, era uma sala grande e ampla, apenas com carteiras encostadas na parede, acho que uma lousa e um espaço enorme no centro para as práticas, foi ali as primeiras aulas da Maristela, ali logo de cara de rompante ela nos ensinou que podíamos nos expressar de outra forma e assim o fez se dirigindo a nós através do “blablablês”, e logo estávamos todos circulando pela sala nos cumprimentando e interagindo com sons, estalos, batuques corporais, cantos. Foi ali que também fiz a minha primeira prática receptiva ao som de Stevie Reich sobre os cuidados do Prof. Raul, ele mostrou para turma a utilização do Audiomusicotens, alguns alunos se ofereceram como voluntários para experimentar, entre eles eu, eu tive a sorte de ser sorteada. Acho que foi a primeira experiência musical com alteração de consciência que fiz, foi incrível, um mergulho profundo na música, percepções mil, de sensações corporais, de cores, de luzes, e a surpresa de perceber que mesmo de olhos fechados eu podia ver o professor se movendo ao meu lado. Essa experiência originária talvez tenha sido o que me colocou em contato com o desejo de estudar a relação entre música e consciência, algo que até hoje permeia meus estudos, ainda que de uma forma muito diferente.
A questão das alterações de consciência me levou a iniciação científica sobre o tema de "Estímulos Sonoro-Musicais e Estados Possíveis de Consciência" e a monografia sobre "Escuta Compulsiva e Dependência Química", que também me conduziu a minha primeira especialização em uma pós-graduação em Dependência Química. Um interesse que surge através da hipótese de que a música poderia alterar tanto a consciência como uma droga, se não me engano a primeira vez que ouvi isso foi numa aula da professora Lilian Engelmann e nunca deixei de perseguir essa ideia.
Nos caminhos intreigantes da vida, foi na pós em Dependência Química que me deparei com a Fenomenologia, de onde surgiu uma paixão que até hoje se intensifica e me move na busca obsessiva e incessante de desvelar, descrever e compreender a experiência musical que parece sempre ter estado junto a mim.
Mas ainda no prédio da Liberdade, no 14º andar, há mais um episódio interessante a relatar. Acho que de lá saímos porque fizemos o prédio todo vibrar. Nós realmente iniciamos o curso, então ainda não havia instrumentos, eles estavam pra chegar. Pra suprir tal necessidade um dia o Raul trouxe uns tubos sonoros feitos de cano de PVC, como aqueles utilizados pelo Uakiti, em que se percute o tubo no chão para ele soar cada toque no chão um tom que soava. Uma Experiência Musical deliciosa e incrível, mas que fez o prédio todo ressoar. Funcionários e professores do direito foram subindo pra ver o que estava acontecendo. No térreo sentiam o prédio vibrar. E então nos mudaram de prédio, atravessamos a rua e fomos pra uma sala que era num andar bem mais baixo. Ainda havia uma janela que dava pra ver o centro. As carteiras ao redor, a lousa grande verde, a escrivaninha do professor sobre um degrau. Ali se não me engano fizeram um isolamento acústico, e os instrumentos também chegaram. Xilofones diversos de vários tamanhos, eles ficavam todos dentro da sala. A sala era todo do nosso curso. As pessoas passavam e olhavam com inveja e estranhamento, como estudar de forma tão divertida? Como sempre precisamos ir ganhando espaço e explicando o que era a Músico o quê?
Nesta sala outras aulas aconteceram, chegaram Lilian, Bernadete, Ana Paula, Cristiane, Paulo Moura, Ivette, e José Carlos e Luciano, professores de fisiologia e anatomia que nos levavam ao laboratório, não o de Musicoterapia que naquela época ainda não existia, mas o de ciências biológicas. Alguns alunos tinham aflição das “peças humanas” do laboratório e alguns até desistiram do curso, pois diziam não ter estômago pra isso. Mas a anatomia também podia ser artística e bem lúdica, e em grupos como avaliação interdisciplinar entre uma disciplina de Musicoterapia e Anatomia criamos verdadeiras instalações sonoras e táteis sobre os sistemas do corpo. Eu e o meu colega Lennon ficamos com o sistema auditivo, e em estúdio criamos uma história sonorizada, sobre a história de uma onda sonora. Outros alunos fizeram instalações tão grandes que não cabiam na sala e então “extra muros” do nosso pequeno mundinho da sala fomos para um espaço onde seria a clínica de Musicoterapia. Essa era a novidade! Construiriam uma clínica só para a gente!
E assim fomos adentrando o universo da Musicoterapia, os primeiros convidados vieram nos visitar. Recebemos o “Terceiro Fórum de Musicoterapia da APEMESP”, num grande auditório, com grandes nomes do meio. Com anúncio da nossa clínica que ficaria pronta. Algum tempo depois ela realmente ficou, num sábado à tarde teve evento de inauguração do direito a corte de fita e tudo mais. Mas o que vimos foi meio frustrante, uns cubículos divididos por divisórias de drywall que já evidenciavam como a coisa não daria certo.
Chegando ao Ibirapuera ...
Mas como disse fomos conquistando espaço, e no segundo ano, uma mudança definitiva foi feita. O curso de Musicoterapia iria para Santo Amaro, no campus da Saúde. E ali sim teríamos uma clínica de verdade! E de fato foi isso que aconteceu, foi assim que chegamos ao quarto andar do campus Ibirapuera e ali assumimos o coração do prédio.
Continua ....
CANÇÕES NO FIO DA ESCRITA (em ordem alfabética)
Aquele Abraço (Gilberto Gil)
Bate Coração (Cecéu) - Elba Raalho
Infinito Particular (Marisa Monte)
Mantra Nordestino (Ray Lima)
Não Quero Dinheiro, só quero amar (Tim Maia)
O Barquinho (Roberto Menescal/ Ronaldo Bôscoli) - Nara Leão
O Que Foi Feito DeVera (F. Brant, M. Borges, M. Nascimento) - Elis Regina e Milton Nascimento
Relace (Gilberto Gil)