Tornando-me docente de Musicoterapia, mais além de ver a banda passar....

ENSAIOS E ESCRITOS  - AFETOBIOGRAFIA - PROVOCANÇÕES EXISTENCIAIS - MAPA DA ESCUTA MUSICOTERAPÊUTICA 

APRESENTAÇÃO(*)
(*) texto de Apresentação da minha dissertação do Mestrado - MULIN, Priscila Bernardo. INVESTIGANDO A EXPERIÊNCIA MUSICAL. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.




A BANDA
(Chico Buarque de Hollanda)

estava à toa na vida 
o meu amor me chamou
pra ver a banda passar
cantando coisas de amor

a minha gente sofrida 
despediu-se da dor
pra ver a banda passar 
cantando coisas de amor

o homem sério que contava dinheiro, parou
o faroleiro que contava vantagem, parou
a namorada que contava as estrelas 
parou para ver, ouvir e dar passagem

a moça triste que vivia calada, sorriu
a rosa triste que vivia fechada, se abriu
e a meninada toda se assanhou
pra ver a banda passar
cantando coisas de amor

o velho fraco se esqueceu do cansaço, e pensou
que ainda era moço pra sair no terraço, e dançou
a moça feia debruçou na janela
pensando que a banda tocava pra ela

a marcha alegre se espalhou na avenida, e insistiu
a lua cheia que vivia escondida, surgiu
minha cidade toda se enfeitou
pra ver a banda passar 
cantando coisas de amor

mas para meu desencanto
o que era doce acabou
tudo tomou seu lugar
depois que a banda passou

e cada qual no seu canto 
em cada canto uma dor
depois da banda passar
cantando coisas de amor


A música sempre esteve presente na minha vida. Desde criança gostava de escutar os discos que meus pais ouviam ou colocavam para que eu e meu irmão ouvíssemos. 

Com nove anos de idade ganhei um violão do meu pai e iniciei meus estudos musicais. Desde então, a minha relação com o universo sonoro-musical e com a vida se modificaram. Minhas preferências musicais se ampliaram na medida em que passei a buscar músicas diferentes para tocar no violão. Havia uma percepção de que a música era capaz de transformar o meu dia a dia; ela me acompanhava em momentos alegres, acalentava-me e gerava reflexões em momentos difíceis. Sempre havia uma música adequada ao momento que eu estava vivendo. Esta percepção permanece até os dias de hoje. 

Durante toda minha adolescência mantive um contato muito próximo com a música, prossegui meus estudos em violão popular acompanhada do canto, e me interessava por tudo que se relacionasse ao universo musical, passava horas do dia ouvindo música. A música era um dos meus principais temas de interesse, um refúgio para situações complicadas, um meio de reflexão, de aprendizado e expressão. A música ampliou meu mundo, trazendo-me o interesse por filosofia, literatura, cinema, artes plásticas e um amplo universo cultural. 

Com quatorze anos, no final do ensino fundamental, o meu dia era dividido em duas etapas: frequentar a escola no período da manhã e estudar música durante o resto do dia. Na escola, as aulas das áreas de humanas me interessavam profundamente, mas havia em mim um incômodo em relação à ênfase exagerada que era dada ao preparo para um ensino médio voltado para “passar” no vestibular. Tal incômodo, levou-me a procurar um ensino médio com uma abordagem diferenciada, e desta maneira escolhi ingressar no curso de magistério. 

Os quatro anos deste curso me tocaram profundamente. A possibilidade de ensinar e de compartilhar o desenvolvimento humano me agradava imensamente. De um lado o desenvolvimento pessoal através da música, do outro o contato com teorias do desenvolvimento, filosofias da educação, a prática na sala de aula através dos estágios. Tudo caminhava de uma forma muito agradável, até que no meu último ano de magistério assumi uma sala de aula oficialmente, já contratada como professora. Estudar de manhã, trabalhar no período da tarde, realizar outras atividades como preparar aulas e fazer cursos de informática e inglês me afastaram da prática musical, gerando-me um grande vazio e tristeza. Percebi que queria seguir meu caminho acompanhada pela música, mas não de forma artística como instrumentista ou cantora, não era o palco que eu almejava, queria utilizar a música para desenvolver algo a mais, utilizá-la no dia a dia com as pessoas, e foi desta forma que conheci a Musicoterapia.

A Musicoterapia é um campo de estudo transdisciplinar, que investiga a interação do ser humano com o universo sonoro-musical com o objetivo de desenvolver uma abordagem prática em forma de processo terapêutico ao utilizar experiências musicais para promover o tratamento, a reabilitação e a melhoria da qualidade de vida. Parte-se da premissa que a música pode promover mudanças no indivíduo, influenciando todas as suas capacidades: sensorial, motora, mental, afetiva, criadora, musical propriamente dita, estética, cultural e social (BRUSCIA, 2000). O desenvolvimento do ser humano através da experiência musical é o objetivo primordial da musicoterapia.

Curiosamente, a minha memória musical mais antiga é da canção A Banda, de Chico Buarque de Hollanda (transcrita no início deste tópico). Lembro-me de pedir, durante a minha infância, que minha mãe colocasse o disco desta música para tocar inúmeras vezes. Naquela época, eu nunca poderia imaginar que além de uma memória afetiva muito forte, o conteúdo desta canção representaria para mim a anunciação de uma trajetória de vida vinculada à música e à possibilidade de inúmeras transformações, bem como a ampliação destas transformações para além do universo pessoal em direção a uma trajetória profissional.   
     
No ano seguinte, em 2001, ingressei então na primeira turma de graduação em Musicoterapia das Faculdades Metropolitanas Unidas em São Paulo. Os quatro anos de formação em Musicoterapia foram bastante intensos: havia encontrado algo que eu gostaria de fazer pelo resto da minha vida. Dediquei-me integralmente aos estudos e estagiei nas mais diversas áreas: Oncologia, Educação Especial, Saúde Mental. Este último me despertava especial interesse, desta forma desenvolvi diversos trabalhos com pacientes psicóticos e dependentes químicos, especializando-me após a faculdade nesta área através de um programa de latu sensu na Universidade Federal de São Paulo.   
        
Trabalhei com diversos tipos de pacientes, gostava da possibilidade de trabalhar com diferentes tipos de pessoas, diferentes idades, diferentes perfis, diferentes diagnósticos. Minha agenda era preenchida pelo trabalho como musicoterapeuta e estudante de música – sim, eu prosseguia estudando música, em seus aspectos práticos e teóricos; os teóricos me despertavam cada vez mais atenção, principalmente o campo da estética musical e filosofia da música.

Assim prossegui, até que no ano de 2008 recebi um convite para ingressar como docente no curso de graduação em Musicoterapia onde eu havia me formado. Foi uma surpresa extremamente gratificante, e assim retornei as salas de aulas, mas agora para ensinar – e aprender com – futuros musicoterapeutas.  

Na minha trajetória como musicoterapeuta, em um primeiro momento, desenvolvi meu trabalho na clínica, ou seja, atendendo diversos tipos de pacientes. Neste período, a particularidade de cada caso clínico atendido estipulava os limites e a utilização das experiências musicais. Apesar de constantes leituras e pesquisas sobre quadros clínicos atendidos e teorias de musicoterapia, não havia necessidade de enquadrar de forma sistemática as experiências musicais vivenciadas no processo terapêutico em categorias; uma reflexão sobre as necessidades do paciente e as formas de experiência musicais que poderiam favorecer suas necessidades, eram suficientes para desenvolver o processo terapêutico.

Na segunda etapa da minha trajetória, agora como professora, os tipos de conhecimentos necessários se modificaram. Neste novo papel, tive que desenvolver um olhar mais sistemático, lançando mão de categorias e teorias que pudessem facilitar a abordagem do assunto de forma didática.

Foi a partir deste momento que comecei de fato a me conscientizar das dificuldades de verbalizar sobre a experiência musical, e que isto estava diretamente relacionado às formas que as pessoas atribuíam sentido à música. Observei que o sentido que os alunos davam à música influenciava completamente seus modos de apreender. Era difícil para um aluno que tinha uma visão muito sentimental de música aceitar o estudo de aspectos mais técnicos e racionais da mesma; para estes alunos, estudar tais aspectos era quebrar o encanto que ela poderia ter, e assim, havia um temor de que a sua relação “mágica” com música poderia ser desfeita e perder o sentido ao se abordar a música de uma forma mais racional. 

Pude verificar, na prática, que há uma boa dose de conhecimento sensível/intuitivo que não passa automaticamente para o campo das palavras. Há certa dificuldade de se expressar em palavras o conhecimento da música e da Musicoterapia. A Musicoterapia, no entanto, é uma prática profissional que necessita de linguagem e repertório próprio de palavras, isto é fundamental para delimitá-la enquanto área. É isso o que faz com que os profissionais que utilizam a música de forma terapêutica em diferentes lugares do mundo possam estar dentro de uma mesma categoria de profissionais. 

Um consenso entre musicoterapeutas é o de que a musicoterapia não trabalha simplesmente com a música, mas sim com as experiências musicais. O aspecto subjetivo da experiência é condição essencial para área. Trabalha-se com a experiência musical e não com a música propriamente dita. Buscar aportes e estratégias para se compreender e explicar diferentes tipos de experiências musicais é de extrema importância para o musicoterapeuta. Para este profissional, a compreensão da experiência musical e das diferentes possibilidades de se vivenciar a música balizará as suas intervenções e a condução do processo musicoterapêutico.

No contato com os alunos, fui observando uma tendência de oscilação entre um pensamento extremamente objetivo e analítico ou uma postura demasiadamente subjetiva pautada apenas em suas próprias experiências com a música e preferências de utilização da mesma. Este contato, levou-me a refletir sobre a necessidade de conduzir o aluno a perceber no decorrer de sua formação que a sua experiência pessoal é diferente da dos outros, e que a prática profissional não deveria apenas se basear na própria experiência musical. Por outro lado, refletia também sobre a necessidade de se entender a complexidade da leitura da experiência musical a partir de diferentes referenciais, não aderindo apenas ao objetivismo das explicações neurofisiológicas da ação da música; era preciso levar-se em conta também a experiência de cada pessoa.

Estas reflexões me levaram a perceber na prática que o musicoterapeuta necessita da sensibilidade da arte, porém necessita também de igual forma dos aspectos mais racionais da ciência. Faz-se então necessário, a este profissional, estabelecer uma ponte fluída entre estes campos do saber, sendo capaz de trafegar rapidamente entre o processo intuitivo e sensível característico da arte para o pensamento racional e analítico mais característico da ciência. 

O tráfego fluído entre estes dois polos é o que propiciará ao musicoterapeuta realizar uma leitura da expressão musical e/ou da receptividade musical de seus pacientes para compreender o processo desenvolvido e continuar a selecionar as melhores estratégias para promover experiências musicais que favoreçam o processo de desenvolvimento do cliente/paciente.

Estes questionamentos somados às reflexões despertadas no meu percurso como musicoterapeuta clínica e docente do curso de formação em Musicoterapia, levaram-me a ingressar no programa interdisciplinar do Mestrado em Educação, Arte e Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com a finalidade de me aprofundar no estudo da experiência musical a partir de perspectivas artísticas e culturais.      

Apesar de a Musicoterapia ser uma profissão transdisciplinar, houve no primeiro momento de sua sistematização uma maior aproximação da área da saúde e da psicologia. Apenas recentemente, a partir da década de noventa, começou haver uma maior abertura de diálogo e um encontro mais fecundo com teorias que enfatizam contextos sociais, histórico-culturais e artísticos, o que reflete a necessidade de se expandir o estudo da Musicoterapia a partir de tais perspectivas, uma vez que a música encontra-se inserida, também, nos campos das Artes e da Cultura. 

O programa interdisciplinar do Mackenzie me propiciou olhar para o meu objeto de estudo de uma forma mais ampla, ao possibilitar o entrelaçamento de diferentes olhares.  Ser interdisciplinar não significa costurar visões diferentes sobre um mesmo objeto, mas estabelecer relações, apropriar-se de um pensamento complexo. As visões de áreas diferentes não se somam nem se anulam, mas constroem possibilidades de novos olhares sobre o objeto de estudo.
                                                                 


Postagem Anterior Próxima Postagem